domingo, 18 de outubro de 2009

Crônica da Cidade: O Cemitério

Enquanto caminhava pelas ruas do bairro, procurava realizar um exercício comum entre os historiadores, enxergar o aqui e agora e ao mesmo tempo perceber o passado em cada esquina, em cada fachada antiga, nos beirais, quintais... Ao passar em frente ao Cemitério não resisti, adentrei o portal, buscava os túlmulos mais antigos, de preferência os que possuíam uma foto em preto e branco. Então fitava aquela imagem, detinha-me por longos minutos, vez por outra passava alguém e com certeza tomava-me por um insano qualquer. Conversava com as fotos, qual sua história, quais foram seus amores, suas dores, suas alegrias, anseios? O Cemitério Municipal do Boqueirão, surgiu lá pela década de 40, quando o terreno foi comprado pelos menonitas, seu antigo proprietário era Pedro Siemens. Aliás, a casa que foi do Sr. Siemens, hoje é utilizada como sede da administração do cemitério. Nesta época era comum que os enterros fossem fotografados, pois as longas distâncias, por vezes, impediam os familiares que viviam em outros estados pudessem comparecer. No Boletim Informativo da Casa Romário Martins, volume 22, número 116 de agosto de1995, consta uma entrevista concedida pelo Sr.Jacob Duck, onde o mesmo relata : "Mas tinha que ser legalizado e a prefeitura, eu tenho a impressão de não permitia um cemitério particular. Assim, como me consta, a comunidade teve que doar essa área para a prefeitura. Mas cada um que era sócio fundador recebia uma pequena parte para enterrar seus mortos. E assim, nas primeiras quadras da frente, estão muitos da nossa gente que faleceram." Muitos podem achar estranho, este transitar pelo cemitério, mas ali existem muitas histórias, silênciadas, apenas esperando que alguém as rememore, a linha entre a vida pulsante e a morte é tênue. O processo histórico segue, embora muitos nem se apercebam, vivendo freneticamente, o ritmo acelerado parece fixar-se no aqui e agora. Interessante pensarmos sobre estes espaços frequentados apenas em dia de enterros ou finados. Durante a Idade Média, a vida social entre os túmulos levou a Igreja tentar controlar a utilização deste espaço. A população ,de grande parte das cidades européias, buscava divertimento, moradia, além disto a cidadania era exercitada ali mesma, comum era ouvir juízes proferindo sentenças, administradores informavam os aldeões sobre suas realizações. Joana d'Arc foi julgada pelo tribunal eclisiático no Cemitério de Ruen, na França. Era nos cemitérios também, que se pronunciavam as sentenças de morte aos leprosos, expulsava-se o doente do convívio em sociedade entregando ao mesmo os objetos de identificariam sua condição: as luvas, a gamela e a ruidosa matraca, com que anunciava sua passagem, este ritual era uma espécie de aviso para que as pessoas sãs se afastassem. Eram encontrados nos cemitérios medievais também os "carniceiros" os açougueiros de hoje, lojas e tabernas onde podia-se desfrutar do vinho. Obviamente, havia um atrativo específico para os comerciantes da época, ali no cemitério estavam isentos do pagamento de taxas, alvarás, impostos e a grande circulação de pessoas lhes era propícia. O comércio tornou-se tão popular nos cemitérios que em 1402, na cidade de Paris os foi proibida a exposição de mercadorias sobre os túmulos, já que os mesmos serviam como uma espécie de vitrine nde eram dispostos livros, roupas, panos. Contudo, frequentar um cemitério medieval durante o período noturno era desaconselhável, o escritor Fraçois Rebelais advertiu que" pedintes, mendigos, e miseráveis" vadiavam entre os túmulos. Rebelais após presênciar o cotidiano em cemitérios medievais escreveu:"Paris é um bom lugar para se viver, mas não para morrer". Ao final da Idade Média, a Igreja romana criou uma série de imposições, afim de acabar com a efervescência generalizada, ficaram vetadas vendas de pão, aves, peixes, carnes, bebidas, enfim quaisquer produtos, exceto as velas. Além do comércio as pessoas costumavam beber, dançar sobre os túlmulos o que causava constantes brigas. Em tempos de guerra os cemitérios serviam como verdadeiros refúgios, se os conflitos perdurassem por muito tempo, os aldeões construíam pequenos quartos em seu interior. No ano de 878, o Concílio de Troyes gerou as condições perfeitas para fomentar a construção de moradias nos cemitérios, embora não fosse esta a intenção. Através deste Concílio ficou determinado seria considerado um grave sacrilégio qualquer roubo em igrejas ou cemitérios, e alguns clérigos mais ávidos pelo lucro, passaram a alugar pequenos lotes. Haviam também as chamadas "reclusas", mulheres que, por devoção, acabavam se confinando em casinhas, algumas atingiam uma vida longa, chegando a viver 46 anos, foi o caso de Alix la Bourgotte, reclusa do cemitério dos Inocentes , homenageada pelo rei Luís XI. Neste mesmo período três mulheres foram confinadas em cemitérios, uma delas por ter assassinado o marido. Em meio á tanta utilização deste espaço, muitas vezes faltava lugar para enterrar os mortos, triste ironia. Ao analisarmos as rupturas na história, vemos que nem sempre os cemitérios foram este espaço de silêncio, onde hoje quem se atreve a passear e pesquisar o passado é tido como, no mínimo "estranho". Convido o caro leitor ou leitora a realizar um passeio pelo Cemitério do Boqueirão, mas isentos de dor ou melâncolia, uma forma de se conhecer um pouco mais sobre um passado tão presente em nosso cotidiano urbano.
OBS: A pesquisa realizada para escrever esta crônica foi realizada no Boletim Informativo da Casa Romário Martins - CURITIBA VOLUME 22 AGOSTO/1995 e na Revista História Viva, nº 67, Ano VI, Artigo " Os Animados Cemitérios Medievais, pela Historiadora especializada em estudos medievais Séverine Fargett-Vissière.

Crônica de um domingo de sol

Acordei um tanto quanto mal humorada, mas creio não ter sido um sinal de ingratidão, ocorre que trabalho de segunda á sexta, ontem sábado, os professores foram convocados, para o Conselho de Classe, então, esta semana foi de segunda á sábado. Até aí tudo bem, gosto do ofício que exerco e obviamente devo realizar todas as tarefas com amor, boa vontade. Mas de onde veio este despertar incômodo, a sim, deve ter sido pela rádio do vizinho, pagode, pensei nossa deve ser tarde já, peguei o celular e qual não foi minha surpresa, não é que marcava 7:15! Ninguém merece após uma semana exaustiva, em pleno domingo, onde se pode desfrutar dos braços de Orfeu até quando desejar, ser retirado do mesmo, assim, bruscamente, e com um refrãozinho daqueles nada criativos típicos desta cultura massificada, sem conteúdo, musicalidade. Se tivesse um vizinho com bom gosto musical, nem ficaria desgostosa, poderia por exemplo ser despertada por Chico Buarque, Lenine, Nando Reis, Rita Lee, Milton e tantos outros. Bem, como era "mui temprano" como dizem os argentinos, virei para o lado, coloquei o travesseiro sobre a cabeça e insisti. Após uma longa sequência de pagode, desisti, levantei, realizei alguns afazeres e fui visitar minha tia Ione, ontem ela completou 82 anos, mas não fui, em virtude do Conselho de Classe. Caminhei até o terminal, onde peguei o biarticulado Boqueirão Praça Carlos Gomes. Um dia finalmente de sol, Curitiba parece uma daquelas cidades típicas das criaturas vampirescas, um dia de sol ás vezes é raro. Sentei-me, peguei o livro de um ótimo contista curitibano, Julio Damasio, começei a ler. O título do livro "Oração de um quase descrente". Antes de prosseguir porém, se faz necessário relembrar algo que chamou minha atenção quando estava na plataforma esperando o ônibus. Como todo escritor, costumo observar todos os desdobramentos do momento, as pessoas, algumas caricatas parecem ter saído das narrativas míticas, outras dos escritos de Nelson Rodrigues. Foi então que um jovem, cabisbaixo, calça de moletom azul, suja, chinelo, camiseta e boné parou ao meu lado. Agora retornando.. Quando estava lá entretida em minha leitura, o jovem da plataforma passa de banco em banco, distribuindo um papelzinho com os seguintes dizeres:"estou pedindo que compre esta cartela de adesivos, preciso ajudar minha família com arroz e feijão para meus irmãos menores". Fiquei atenta a cada movimento do garoto, era um rapaz de no máximo dezesseis anos, muito bonito, mas extremamente judiado, evitava olhar para cima, sempre fitando o chão. Fui tomada ali de uma tristeza ímpar, como é dilacerante olhar um jovem sem nada no olhar, seu olhar era vazio, para não dizer que era totalmente vazio , havia ali uma vergonha escândalosa. Após recolher os adesivos dos que não compraram, ele desembarcou no primeiro terminal. Prossegui minha jornada, presenteei minha tia com um livro embrulhado em jornal, escolhi um pedaço do jornal O Rascunho, cuja matéria era sobre William Shakespeare, assim tia Ione poderia ler o embrulho também. Despedi-me após alguns momentos agradáveis relembrando tempos passados, histórias de família, conversas de aniversário. Confesso que não via a hora de chegar e poder transcrever o encontro, apenas com a imagem daqueles olhos castanhos tristes, em um dia de domingo de sol. Lembrei do conto de Damásio "oração de um quase descrente", era exatamente aí que eu estava quando o rapaz me abordou.....

sábado, 17 de outubro de 2009

Crônicas de Sala de Aula: Sobre a Violência

Cheguei em casa após um longo dia, aulas e mais aulas, uma sequência de dez! Sexta á noite, ainda havia correções de trabalhos, provas, mas isto ficaria para o sábado. No domingo á noite quando me preparava para deitar um notícia daquelas do plantão jornalístico: Chacina no bairro Uberaba, deixa oito mortos. Fiquei perplexa, sim, ainda ficamos, ainda não atingimos o estado de torpor, ainda não! Leciono em uma escola deste bairro, imediatamente pensei nos meus alunos, em suas famílias e pedi á Deus que estivessem bem. Na segunda quando entrei na sexta série estavam todos com ar de assustados, um silêncio macabro pairava no ar. Fiz a chamada e iniciei uma conversa sobre o ocorrido, os relatos foram triste de se ouvir. Tipo "professora minha tia mora na região,meu primo não veio á aula hoje, por mêdo". Professora eu conhecia a mãe e o bebê de cinco meses que morreram quando voltavam da igreja". Difícil saber o que dizer, mas insisti mais uma vez de que o caminho, a saída para mudar esta situação é a dedicação aos estudos. Repeti a velha história de que o tráfico não leva á nada, ou melhor leva, ou á morte prematura ou para prisaõ, aqueles verdadeiros depósitos de gente. Procurei fazer uma relação histórica sobre a maldade humana, salientei que em todos os períodos houveram os que fizeram a opção pelo lado obscuro, sombrio e aqueles que fizeram a opção pelo lado da dignidade, do trabalho, da firmeza de caráter. Nesta aula pedi que meus alunos fizessem uma redação sobre o que desejavam para seu futuro, e a maioria escreveu que apenas desejava estar vivo! Quando entrei na quinta-série um aluninho logo me abordou pedindo insistentemente que o avisasse quando fosse 16:30. Questionei qual motivo desta insistência, ele respondeu " é que tem o toque de recolher lá professora, os traficantes que saíram atirando estão anunciando, meu pai vem me buscar mais cêdo, pra não estarmos na rua depois das seis". Quando deu 16:30 avisei o pequeno Lucas, ele saiu cabisbaixo e eu fiquei ali, completamente impotente, querendo fazer algo, sem poder! Difícil prosseguir a aula, mas o ofício assim nos exige. Á noite no jornal local, as fotos das vítimas, a mais velha era a mãe do bebê, ela tinha 29 anos, os demais, 22, 17, 25, cinco meses.... Todos inocentes, sem nenhuma passagem pela polícia, todos com seus sonhos, anseios, sepultados no véu da escuridão da ignorância. Os caras que realizaram a chacina, são todos do tráfico e queriam intimidar os moradores da região, conseguiram muito mais do isto. Pensei no mito da caverna, a lição de Platão sobre a necessidade da sociedades sair da caverna que nos afasta da luz da verdade. Escrita há quase 2.500 anos, continua a insipirar. Estamos bem no centro do caos urbano, da insegurança, da violência. Mas se seguirmos Platão vislumbramos que a caverna obscura esta no interior das pessoas, muitas cultivando ódio, inveja,preconceitos, ciúmes, medo, preguiça. Creio que passarei a incrementar minhas aulas com o mito da caverna, inserí-lo em todas as séries que leciono. Assim lembro de um grande especialista em Mitologia, Josefh Campbell, que dizia " há tanta violência na sociedade hoje , porque não há mais grandes mitos para ajudar os jovens a se relacionar com o mundo, ou a compreendê-lo, para além do meramente visível". Através da alegoria de Platão percebemos que as fantasias, esperanças são o início desta viagem. Depois há que se ter o controle destas fantasias, uma espécie de viver o "presente", visto que o passado e o futuro são cavernas que tendem a nos afastar da realidade. A próxima etapa é buscar a essência das coisas, quando a mente se ocupa do real valor de se estar aqui. Gosto de um exemplo dado pelo saudoso Joseph Campbell, especialista em mitologia para exemplificar tal questão: " A mente se ocupa do sentido. Qual o é o sentido de uma flor? Há uma história zen sobre um sermão de Buda, em que este simplesmente colheu uma flor. Houve apenas um homem que demonstrou pelo olhar, ter compreendido o que Buda pretendera mostrar. Pois bem, o próprio Buda é chamado "aquele-que-assim-chegou". Não faz sentido. Qual é o sentido do universo? Qual é o sentido de uma pulga? Está exatamente ali. É isso. É o seu próprio sentido é que você está aí. Estamos tão empenhados em realizar determinados feitos, com o propósito de atingir objetivos de um outro valor, que nos esquecemos de que o valor genuíno, o pródigo de estar vivo, é o que de fato conta." As palavras de Campebell nos ensinam muito, não precisamos colher as flores para apreciá-las e sentir seu suave perfume, basta contemplá-las apenas. Esta geração que esta hoje nas salas de aula precisa urgentemente perceber isto, caso contrário a música da vida cada vez terá menos valor. Um longo e árduo trabalho.

Sobre um ofício

Josephef Campbell, especialista em mitologia sempre encantou-me. Em O Poder do Mito, onde o referido autor concede a Bill Moyers uma entrevista sobre sua obra, existe uma passagem que traduz meu encantamento, quando Campbell relata uma cena de quando exercia o ofício de professor em uma escola preparatória para meninos e costumava instigar seus alunos sobre que carreira pretendiam seguir. Um dia um garoto aproximou-se do mestre e perguntou: " Você acha que eu posso fazer isto? Você acha que posso ser escritor?" Então Campbell lhe respondeu: " Ah, eu não sei. Você é capaz de suportar dez anos de frustrações, ninguém prestando atenção a você, ou você acha que vai escrever um best-seller logo na primeira tentativa? Se tem garra para perseverar no que realmente quer, não importa o que aconteça, então vá em frente." Então segundo Campbell aparecia o papai ou a mamãe e dizia:"Não você vai estudar Direito, porque oferece mais mais perspectiva financeira." Isto não era perseguir a bem-aventurança, Campebell lançava a questão: "Você pretende se dedicar à fortuna ou à bem-aventurança?" Cada dia mais a bem-aventurança é vista como algo de maluco, irresponsável, até lunático. Neste contexto emergente onde "ter é poder", aqueles que insistem em perseguir o que lhes dá paixão, lhes preenche a alma, parece que estão em um universo paralelo, outra dimensão. Claro que ir atrás daquilo em que acreditamos implica em constantes desafios, mas bem mais prazerosos visto que o objetivo final esta em uma realização realmente motivante. Ontem foi comemorado o dia do professor, este é um desafio em tanto para todos que optaram pela carreira, afinal professores travam todos os dias batalhas dignas de heróis da resistência. Resistimos á falta de valorização de nosso ofício, sempre me questiono o motivo que leva um médico, ou um advogado, ou outros profissionais com formação superior receberem mais, não compreendo. Estes dias estava na sala dos professores na hora do intervalo e resolvi dar uma lida no jornal do dia, estava a notícia, "presidente do Senado quer a aprovação do salário duplex". Segundo a matéria o referido político recebe a bagatela de 52 mil reais por mês e quer mais! Pensei comigo mesma, gostaria de ver alguns políticos passando pela experiência de serem professores, uma espécie de big brother escolar.. Imagina o presidente do senado e mais alguns selecionados, tendo a missão de sobreviver durante um ano como professores, trabalhando realmente. Confesso viajo por demais, mas imaginei o nobre senhor dentro de uma sala de oitava série, lutando para conseguir fazer a chamada, depois implorando pelos trabalhos que havia pedido quase um mês atrás, e tendo que paralisar sua oratória para separar um briga de garotas que se agarraram pelos cabelos... Quando dei por mim estava rindo sozinha, meus colegas de trabalho me olhavam sem nada entender, nem precisa. Resumindo toda esta ladainha é só para lembrar a importância que possui um professor, aquele que exerce com seriedade, com respeito e com amor o ofício escolhido. Uma espécie de homenagem a todos nós que buscamos não encher nossos alunos de conhecimentos mas acima de tudo que nos preocupamos em levá-los a reflexão, a consciência de que sigam o que lhes inspira paixão. Quando eu estava na oitava série tive um professor de português que passava sua paixão, nos contagiava em suas aulas, aquele era seu diferêncial, quando entrava na sala tudo assumia outra perspectiva. Bem como quando realizei minha graduação, a primeira aula que tive foi de História Antiga com o Doutor em História José Bento Rosa da Silva, professor brilhante, que em sua primeira aula conosco recitou o poema de Bertolt Brecht "Perguntas um operário que lê". O professor Bento como costumávamos chamá-lo nunca podava um aluno, por mais fora de contexto que a intervenção pudesse ser, o mestre sempre parava, colocava as mãos no queixo e dizia: " Podemos pensar nisto que você falou"... Nunca desprezou ou calou um aluno, e ao longo da graduação era nítida a diferença que isto fazia, este é o exemplo do mestre que exerce com paixão o ofício que escolheu. Ironia do destino ou não, enquanto estou terminando esta crônica na tv esta passando uma reportagem , acabei de ouvir o relato de uma professora de história afastada por depressão motivada pela violência sofrida em seu cotidiano, tendo que lidar com ameaças, e agressões, sonha em voltar a dar aulas, mas não sabe quando... Este mês completaram-se treze anos sem Renato Russo e ainda o questionamento é o mesmo: "Que país é esse"?

Crônicas de Sala de Aula : Sobre governos militares I

Hoje, mais uma sexta-feira, só para não variar o dia aqui na capital paranaense amanheceu chuvoso, cinza, mas levantei-me animada afinal sexta que antecede o sábado, hum mas acabei de lembrar, amanhã tem conselho de classe , sábado de Conselho! O tema de hoje: Governos militares, começando lá no golpe que derrubou João Goulart, seguindo pelo governo do general Humberto Castello Branco e a sequência de atos institucionais, AI-1, AI-2, AI-3, AI-4 e o fatal e derradeiro AI-5! O exercício de estimular jovens adolescentes a prestarem atenção em uma aula de história é cotidiano e árduo, mas na sexta é um pouco pior.. Quem disse que eles querem saber de um tal general sei lá das tantas que baixou uma série de atos institucionais e blá, blá.... Sinto muito mas por vezes sou obrigada a chamar na responsa, tipo assim, aumento o tom de voz, e falo; "mas é exatamente o que os militares desejavam, criar uma sucessão de gerações alienadas, descompromissadas com sua história, com sua realidade, eles conseguiram, agora, como eu gostaria que vocês pudessem passar nem que fosse um só dia nas garras da ditadura militar, neste período tenebroso da história de nosso país". Eles silênciaram por alguns segundos e ficaram me olhando, aí aproveitei e prossegui, " mas lá pela década de oitenta haviam jovens que estavam ligados aos acontecimentos, sabiam das torturas, da falta de liberdade democrática e faziam algo". Perguntei se conheciam Renato Russo, e nossa somente uma garota sabia quem foi. Falei sobre o jovem Renato, de sua vida no planalto central e das letras de constetação, até cantei um pedaço: "nas favelas, no senado, sujeira pra todo lado, ninguém respeita a constituição mas todos acreditam no futuro da nação, que país é este?". A geração de oitenta produziu arte aliada á cultura, informação e não como vemos hoje, uma sequência de "artistas" que criam lixo comercial, cultura de massa, refrão chinfrin, sem conteúdo, apenas baboseiras comerciais. Uma letra lá dos anos oitenta, disse aos meus alunos, deve ser por isto que esta letra é tão atual, a podridão impera justamente pela falta de importância que se dá a trajetória histórica brasileira, aí é inevitável, a ciclicidade, tudo de novo, tudo repete-se! Imaginem disse eu que nosso amigo o Fernando(um dos alunos) fosse prefeito lá de Pirapora do Norte na época do governo de Castelo Branco e que o Nandinho não concordasse com o governo militar, que lutasse pela liberdade democrática. Então, através de um dos Atos Institucionais, fosse retirado de seu cargo e sumisse assim por encanto! Era exatamente isto que ocorria, aliás estamos vendo uma campanha na tv sobre desaparecidos políticos, alguns alunos até comentaram que haviam visto a de uma mãe imensamente triste pelo desaparecimento do único filho. Salientei que através das torturas muitos jovens, estudantes, militantes, perderam a vida e que se hoje nós temos a democracia, temos obrigação de saber, aprender para nunca esquecer a luta de muitos para que hoje sintamos o gosto da liberdade. Liberdade de poder escrever, questionar as ações de políticos, sem que sejamos jogados nos porões ditatoriais militares. Ás vezes pego pesado mesmo, afinal nossa juventude precisa saber o que houve neste país, nós professores de história temos a missão de levar estes jovens pelas mãos até um passado não tão distante assim, e mostrar que Gregório Bezerra 64 anos foi arrastado em um jipe militar pelas ruas de Recife, considerado um inimigo do Estado. Temos o compromisso de contar a história do jornalista Vladimir Herzog, que em 1975, governo do general Ernesto Geisel, foi torturado, choques elétricos e uma longa sessão de tortura colocou fim á sua vida. E que depos a Agência Central do SNI, em Brasília informava que" hoje 25 de outubro, cerca das 15:00 horas, o jornalista Vladimir Herzog suicidou-se no DOI/CODI/II Exército". Herzog seria o 38º suicida, o 18º a se enforcar, "suicídios como este eram tão comuns"... Não podemos culpar nossos jovens pela alienação a que estão mergullhados, afinal são vítimas dos anos de ditadura militar vividos, expliquei aos meus alunos que a educação foi relegada a um segundo plano, que o objetivo dos militares era de formar técnicos, mão de obra barata para as indústrias, e não cabeças pensantes. Mas Herzog vive, porque não se apaga a história por mais suicídios que se queiram criar, não devemos nos calar nunca, nunca!